O caminho sinuoso da indenização

Golfo do México: explosão da plataforma Deepwater Horizon, da petrolífera British Petroleum (BP), provocou o vazamento de cerca de 5 milhões de barris de petróleo
Foto: Chris Graythen/Getty Images

Ambiente de alta informalidade no Brasil é um dos desafios para a compensação de danos aos impactados por grandes desastres ambientais

Em um contexto de devastação causada por tragédias ambientais, a medida imediata a ser tomada é prestar assistência às vítimas. Paralelamente, começa um longo debate sobre como indenizar as pessoas atingidas. Desenvolver e colocar em prática um plano para reparar perdas e danos de forma ampla, rápida e digna demanda muitos esforços, que no Brasil ainda são potencializados pelo ambiente de alta informalidade.

O conceito jurídico de indenização pode ser resumido como a restituição de um prejuízo, a partir do entendimento secular de que, se alguém lesar terceiros, deverá arcar com as consequências – algo presente desde as primeiras legislações, como o Código de Hamurabi e o Direito Romano. No Brasil atual, o Código Civil de 2002 afirma: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia, violar direito ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”.

Os desafios se multiplicam em várias frentes: há obstáculos no âmbito jurídico, na diversidade e abrangência do impacto e na necessidade de estabelecer uma relação de confiança com todos os públicos por meio da transparência e do diálogo. A morosidade no atendimento nunca é bem compreendida por quem está vivendo os problemas do desastre e espera uma solução rápida.

No caso do Brasil, a informalidade é um obstáculo significativo para se determinar e comprovar a extensão do dano ocorrido durante o processo indenizatório, tornando a tarefa de indenização extremamente complexa. Existem diversas comunidades e atividades em que os atingidos não possuem absolutamente nenhum registro de renda.

Como atribuir valores ao intangível e ao mesmo tempo estabelecer uma indenização justa e rápida, apoiada na legislação brasileira? Como encarar desafios nunca enfrentados, questões sem precedentes, sem resposta definida ou de fácil solução?

Essa foi a situação encontrada pela Fundação Renova em comunidades ao longo dos 650 quilômetros do Rio Doce atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Algumas dessas pessoas jamais fizeram uma declaração de Imposto de Renda nem tiveram a carteira de trabalho assinada, ou mesmo uma conta bancária. Trata-se de uma realidade em que serviços, bens e produtos são trocados entre si, dinheiro vivo é passado de mão em mão e não há acúmulo ou estoque. O que se ganha se gasta. Nesse ambiente informal, faltam registros de aquisição de bem ou produto para a própria sobrevivência e de qualquer outro elemento que represente uma renda mensal.

Para especialistas ouvidos pela dois pontos, falta clareza ao aplicar as leis brasileiras referentes a indenizações em casos específicos como esse. Em um cenário indefinido, os envolvidos são levados a criar parâmetros próprios, fazendo com que o diálogo se torne ainda mais necessário.

A lei tem 37 anos e não houve evolução legislativa. Falta estabelecer critérios de vieses mais técnicos.

Rodrigo Brandão Lex, advogado especialista em direito ambiental

O advogado e professor da PUC-SP Rodrigo Brandão Lex analisa a falta de objetividade na legislação: “A lei tem 37 anos e não houve evolução legislativa”, ressalta, referindo-se à Política Nacional do Meio Ambiente, estabelecida em 1981 (Lei nº 6.938). O texto deixa claro que cabe ao poluidor, independentemente se foi julgado ou não por crime ambiental, recuperar ou indenizar os danos que causou. Com isso, o Ministério

Público pode propor ações de responsabilidade civil por danos à natureza e a terceiros. Só não entra em detalhes na forma como essa reparação deve ser feita. “Faltou, nesse documento, estabelecer critérios de vieses mais técnicos.”

O advogado Diego Faleck é um estudioso do instrumento jurídico da mediação, ainda pouco conhecido no Brasil, mas que contribui para processos em que o diálogo é fundamental. Ao cursar Mestrado na Harvard Law School, nos Estados Unidos, entrou em contato com o professor Frank Sander, considerado o “pai da mediação” nos tribunais americanos nos anos 1970, e Robert Bordone, um dos grandes especialistas no assunto. “Enquanto nos Estados Unidos o juiz não apenas julga, como media conflitos, aqui no Brasil ninguém tinha visto isso na prática”, explica Faleck (assista à entrevista completa).

Faleck colaborou na concepção do Programa de Indenização Mediada (PIM), da Fundação Renova. “No caso do rompimento de Fundão, foi necessário estabelecer um sistema de mediação entre a empresa responsável pelo desastre e os atingidos. É um caso sem precedentes em todo o mundo. Foi muito difícil estabelecer os diversos critérios e parâmetros jurídicos do programa, assim como regularizá-lo por meio do diálogo. Criamos medidas para agilizar e simplificar o processo”, acredita.

O caminho da negociação

O advogado havia aplicado o método da mediação de conflitos pela primeira vez em 2007, quando trabalhava como Chefe de Gabinete da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ). Naquele ano, viabilizou as indenizações aos familiares das vítimas do voo TAM 3054, avião que se acidentou ao tentar pousar no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Foi um marco. “Há casos anteriores nos quais as pessoas estão na Justiça até hoje”, ressalta. “Já nesse acidente, acertamos 95% dos acordos em dois anos. Acabou virando uma referência.”

Hoje, ao orientar a aplicação do método no PIM da Fundação Renova, Faleck afirma: “Temos um grau de complexidade bem maior do que qualquer outro processo de indenização, pois foi preciso estabelecer inúmeros critérios e parâmetros jurídicos do programa e regularizá-lo com muito diálogo junto aos impactados”, defende. Segundo ele, o PIM é um processo de indenizações em escala jamais visto no mundo. O ineditismo e a complexidade em número e diversidade de pessoas e danos, além da extensão territorial e, principalmente, em um ambiente de alta informalidade, fez desse exercício um desafio extraordinário.

O judiciário implica custo, risco e tempo.

Diego Faleck, advogado especialista em mediação de processos indenizatórios

Como boa parte das perdas e dos danos não pode ser autenticada por documentos, o PIM analisa caso a caso e busca outras formas de validação como a apresentação de diferentes tipos de contratos, notas fiscais, recibos bancários, registros fotográficos e depoimentos de testemunhas. Na Justiça, os comprovantes aceitos são muito mais restritos. Assista ao vídeo

A ocorrência de fraudes no processo de indenização é um dos entraves mais complexos de contornar.

Como é preciso ter mais cautela e cuidado na hora de analisar os documentos de comprovação, o prazo muitas vezes é comprometido. “Oportunistas que forjam documentos impactam no direito legítimo dos atingidos”, diz a advogada Ticiana Faviero, especialista em prevenção e resolução de conflitos que acompanha o Programa de Indenização Mediada da Fundação Renova. Ela dá o exemplo de pessoas que adulteram contas de água e luz alegando que estavam no local impactado por um desastre.

No caso do rompimento da barragem de Fundão, Ticiana chama a atenção para o fato de ter havido uma migração incomum de pessoas para a área atingida em busca de algum tipo de indenização. Nem todas, no entanto, moravam no local no momento do desastre. Situações como essas acabam por dificultar o diagnóstico de quem, de fato, tem direito às indenizações.

Com a palavra, a Justiça

Em um processo judicial, para que exista o dever de ressarcir é necessário comprovar a existência de um dano patrimonial ou moral e a relação direta dele com a ação (ou a omissão) do agente causador. Quando um caminhão desgovernado atinge a frente de uma casa, não é qualquer rachadura da casa que será ressarcida, mas aquelas provocadas pelo acidente. Essa ligação entre a causa e efeito é chamada de nexo causal. No contexto ambiental, o dano se caracteriza pelo resultado de efeitos adversos de uma atividade ou produto sobre o meio ambiente, alterando seu equilíbrio, como a diminuição ou extinção de um recurso natural ou organismo vivo.

Apesar de ser a via mais lembrada por quem busca na Justiça por seus direitos, a indenização não deve ser a única forma de ressarcimento. “O pagamento de um valor equivalente ao prejuízo é o último caminho, indicado apenas em caso de danos irreparáveis”, explica Brandão Lex. A primeira opção, principalmente em casos de desastres ambientais, é a restauração total, que envolve deixar tudo como era antes. Em seguida vem a recuperação parcial, que visa chegar o mais próximo possível do ideal. Na compensação, algo é dado em troca de outro.

Uma medida não exclui a outra e elas podem ser aplicadas em combinação. “A indenização é o mínimo que pode ser feito, uma obrigação do causador”, afirma Diego Faleck. “Dentro da cultura de responsabilidade social, há muitos outros elementos que complementam a indenização, como o reassentamento e o apoio ao desenvolvimento econômico da região afetada.” O ideal é que o ressarcimento venha acompanhado de outras medidas que permitam que a comunidade atingida não só se reestruture como se fortaleça a longo prazo.

De qualquer forma, a reparação deve cobrir todo o prejuízo. Além de danos materiais, também os morais, que podem englobar sofrimento psicológico e mental, angústia e outras emoções. Há ainda a discussão sobre lucros cessantes, relacionados a quanto a pessoa ou a empresa deixou de ganhar com a interrupção de sua fonte de renda, uma projeção difícil de alcançar. Isso independe do grau de culpa do agente causador. Como destaca o Código Civil: “A indenização não se mede pela gravidade da culpa, mas pela extensão do dano”. Tudo isso leva à grande questão em processos indenizatórios, a seguir:

Como definir valores para perdas?

São vários os parâmetros levantados ao atribuir valor a uma indenização, mas, no Brasil, não há regras claras para determinar o montante. Alguns países estabelecem um teto. A Justiça brasileira, no entanto, costuma levar em conta o custo da reparação do dano, o preço de mercado de um item semelhante e até o tamanho do patrimônio do infrator.

Outro cálculo usado é o do lucro cessante, ou seja, projetar o ganho que determinadas atividades econômicas, da agricultura ao comércio, poderiam gerar caso não fossem interrompidas por um desastre ambiental de grandes proporções. Entram na conta ainda os gastos do atingido para contornar os efeitos do desastre, por exemplo, o que ele desembolsou para reconstruir a moradia por conta própria.

Quanto maior a proporção dos estragos, mais difícil é indenizar, pois reparações em grande escala envolvem esferas governamentais e empresas de diferentes setores. A explosão da plataforma da British Petroleum, no Golfo do México, em 2010, por exemplo, afetou as atividades de muitas áreas. Com um terço das águas do Golfo contaminada, a pesca cessou, o turismo foi prejudicado durante meses e de 8 mil a 12 mil pessoas perderam o emprego só nos Estados Unidos. Além disso, aves ficaram envoltas em óleo, mais de mil baleias encalharam na pasta de sujeira e cerca de 1.700 tartarugas marinhas morreram.

No caso do 11 de Setembro, em Nova York, mesmo 17 anos depois do atentado, o número de vítimas com doenças relacionadas às toxinas liberadas pela queda das Torres Gêmeas continua a crescer, multiplicando a lista de indenizações. A poeira desprendida após o ataque continha amianto, chumbo, metais pesados e gases venenosos, o que afetou a saúde de socorristas e sobreviventes. Um fundo de compensação, no valor de US$ 7 bilhões, foi criado para indenizar os impactados. De acordo com advogados, os valores recebidos dependem da complexidade de cada caso e podem levar até um ano para serem pagos.