Migrações forçadas: as principais causas e a busca por soluções

Trabalho de resgate em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, onde um deslizamento de terra causou, em 2011, um desastre sem precedentes na região
Foto: Jadson Marques/Folhapress

Desastres ambientais respondem pela maior causa da migração involuntária no Brasil. Obras de infraestrutura e urbanização e violência também estão entre as principais razões desse movimento

Em um mesmo ano, mais de 31,1 milhões de pessoas, em 125 países, deixaram forçadamente seus lares para outros lugares no mesmo território nacional, de acordo com levantamento referente a 2016 do Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos (IDMC, na sigla em inglês), com sede na Noruega. Esse movimento, conhecido como migração involuntária, é definido pela retirada definitiva ou temporária de indivíduos, famílias e/ou comunidades, contra sua vontade, das casas e/ou da terra que ocupam.

Segundo o IDMC, as motivações para a migração involuntária podem ser variadas: desde obras públicas ou privadas de infraestrutura e urbanização até situações de vulnerabilidade social, conflitos e violência, passando por acidentes e desastres ambientais.

No Brasil, levantamento do Observatório de Migrações Forçadas (plataforma digital que acompanha a distribuição dos deslocados no país) divulgado em 2018 aponta que, dos 8,8 milhões de deslocamentos forçados estimados entre 2010 e 2017, 6,42 milhões (73%) foram motivados por desastres – enquanto 1,29 milhão decorreu de projetos de infraestrutura (hidrelétricas, rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, complexos esportivos) e urbanização (saneamento, contenção de encostas etc.).

Existem ainda, no país, fatores atrelados à violência de conflitos por terra, de gangues e milícias, de forças policiais – cuja contabilidade é imprecisa –, além dos estrangeiros em condição de refúgio, grupo estimado pelo Instituto Igarapé, ONG que mantém o Observatório de Migrações Forçadas, em 10 mil pessoas já reconhecidas no território nacional (saiba mais nesta entrevista com Robert Muggah, co-fundador do Instituto Igarapé).

A migração involuntária é uma realidade em todo o mundo, mas ocorre com maior frequência em regiões com índices mais elevados de pobreza e desigualdade social. Sejam quais forem os motivos que desencadeiam o movimento, há um fator determinante para a forma como o processo de reassentamento deve ser realizado: se o deslocamento parte de um cronograma previamente estabelecido ou de um evento não programado.

“A gente diz que o reassentamento é involuntário porque as pessoas não estavam se programando para a saída daquele espaço. Mas quando (o motivo do deslocamento) é programado e negociado as pessoas começam a se planejar e a entender o impacto que vão sofrer”, explica a assistente social especialista em mediação de conflitos Ana Carolina Gonçalves, líder de Diálogo da Fundação Renova em Mariana (MG).

Há casos em que, no período entre a saída das casas e o assentamento definitivo em outro lugar, é possível fazer um planejamento. São aqueles que envolvem remoções para obras de infraestrutura e urbanização e, algumas vezes, quando se mapeia antecipadamente a ocorrência de risco de deslizamentos, inundações e outras vulnerabilidades sociais.

Nessas situações, as equipes envolvidas na mediação conseguem fazer o que Ana Carolina chama de “trabalho de preparação” com a família. “Isso inclui procurar a casa e analisar o território novo, saber onde as pessoas vão dormir, onde vão pegar ônibus para trabalhar e onde será a escola nova da criança, levar a criança para conhecer a escola antes mesmo de a família se mudar. É ir no posto de saúde, na pracinha, no supermercado”, exemplifica.

Situações planejadas

Nas situações de remoção involuntária previamente planejada em que é o responsável, o Estado “tem de estar preparado para atender as pessoas da melhor forma possível, dentro da legislação e dos acordos internacionais”, afirma o antropólogo Jorge Mercês, estudioso do deslocamento das famílias em decorrência da construção da Usina Hidrelétrica de Irapé, no Pará, e suas consequências.

Mesmo em casos programados, surgem problemas de ordem econômica, social e ambientais que precisam ser observados para nortear as melhores práticas nos processos de reassentamento. É o que sinaliza a Diretriz Operacional do Banco Mundial, de 1990, elaborada para orientar projetos que envolvam deslocamentos involuntários. Entre as principais questões a considerar, o documento destaca a perda de bens produtivos e fontes de renda, o enfraquecimento das estruturas comunitárias, a dispersão de grupos de parentesco e a fragilização da identidade cultural, da autoridade tradicional e do potencial de assistência mútua.

Megaeventos impactam o direito à moradia em consequência de deslocamentos causados pela construção de estádios e infraestrutura urbana (Foto: ERBS JR./Frame/Folhapress)

Entre os recentes exemplos brasileiros de remoções programadas de grande repercussão pública estão aquelas causadas pelas obras de preparação para as competições esportivas que aconteceram nos últimos cinco anos. Em artigo publicado no livro Brasil: os impactos da Copa do Mundo 2014 e das Olimpíadas 2016, o geógrafo Demian Garcia Castro e a assistente social Patrícia Ramos Novaes, vinculados ao Observatório das Metrópoles, apontam que esse tipo de megaevento tem impactado diretamente o direito à moradia pelo mundo, em consequência dos deslocamentos causados, sobretudo, para a construção de estádios, infraestrutura de mobilidade urbana e aeroportos.

Os pesquisadores lembram que, na Matriz de Responsabilidades firmada entre o governo federal, a Federação Internacional de Futebol (Fifa) e representantes das 12 cidades-sede da Copa do Mundo, foram projetados diversos tipos de intervenções urbanas para mobilidade, segurança, turismo e reforma ou construção de centros desportivos, mas “nenhuma ação diretamente relacionada à moradia para os setores de baixa renda foi desenvolvida”. A fragilidade das políticas habitacionais, segundo eles, resultou na elevação do custo para compra e aluguel de residências e de terra, em consequência especialmente das intervenções urbanas focadas em áreas mais ricas e centrais, e em remoções e despejos, muitas vezes ao largo das leis vigentes.

De acordo com o Instituto Igarapé, há levantamentos indicando que entre 150 mil e 170 mil pessoas tenham sido forçadas a deixar suas casas em decorrência das duas competições, embora o Observatório das Migrações Forçadas confirme ao menos 47 mil desses deslocamentos. Independente do número de atingidos pelos megaeventos, Castro e Novaes concluem que de fato houve “um processo de ‘relocalização’ das pessoas de baixa renda no Rio de Janeiro removidos das áreas turísticas e de valorização imobiliária em prol de um processo de mercantilização do espaço urbano que foi amplamente fortalecido pelos megaeventos, de modo que intensificou a segregação socioespacial urbana.”

Dentro e além das fronteiras

Deslocamentos podem acontecer dentro de um mesmo território nacional ou transcender fronteiras. Enquanto a proteção aos deslocamentos compulsórios transnacionais é coordenada por protocolos do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), a dos deslocamentos internos envolve contextos e legislações locais.

O antropólogo Jorge Mercês conta que as remoções dentro de um mesmo país só ganharam reconhecimento do seu caráter humanitário nos anos 1990. Até então, a perspectiva era não englobar o tema entre as questões que extrapolavam as esferas de decisão dos Estados nacionais. “A partir do fim da Guerra Fria, essas situações se tornaram mais evidentes e passaram a demandar um estatuto específico para serem tratadas”, explica.

Situações emergenciais

Quando a necessidade de planejar um reassentamento parte de uma descontinuação abrupta dos modos de vida, as pessoas deslocadas ficam ainda mais vulneráveis às fragilidades de uma migração involuntária. Por sua natureza emergencial, o deslocamento compulsório não planejado demanda, segundo o antropólogo Jorge Mercês, uma ajuda humanitária justamente por não estar amparado por toda a instituição do Estado. “Nesses casos, o Estado não planeja, não elabora políticas de investigação dos danos”, afirma.

Além das necessidades materiais imediatas, as rupturas provocadas por evento não esperado trazem efeitos psicossociais imediatos e, por consequência, maior resistência dos atingidos, que precisa ser conciliada com decisões de curto, médio e longo prazos. “O processo de reassentamento involuntário em uma situação não programada dificulta a iniciação de uma conversa sobre pensar o futuro, porque elas perderam tudo de concreto que remetia à sua história”, ressalta Ana Carolina Gonçalves.

Especialista em reassentamentos e consultora do Banco Mundial, a engenheira Soraya Melgaço observa que, nos casos não programados, o levantamento de informações sobre o grupo deslocado, fundamental para planejar o reassentamento, é bem mais complexo. “A principal diferença de um reassentamento planejado é poder conhecer o universo de intervenção antes da sua atuação. É possível conhecer a dinâmica social e urbana, as formas de produção e de vida daquela população. Em um reassentamento não planejado é preciso adotar elementos secundários, depoimentos, relações de vizinhança. Você tem de buscar outros elementos para conseguir compor a sua lista do censo, e isso é uma situação mais delicada”, explica.

Dados do Observatório de Migrações Forçadas indicam que as inundações, as enxurradas e as tempestades foram as três causas mais recorrentes de deslocamentos involuntários por desastres no Brasil entre 2010 e 2017. E, de acordo com o relatório Proteção aos Direitos Humanos das Pessoas Afetadas por Desastres, cerca de 3 milhões de pessoas vivem em áreas urbanas suscetíveis a inundações e deslizamentos no país. É o caso da região serrana do Rio de Janeiro.

No verão de 2011, o volume de chuvas foi tão intenso, que, somado à ocupação desordenada do solo e a um histórico de desmatamento e erosões, causou inundações e deslizamentos de terras em 16 municípios do estado e resultou em mais de 900 mortes e 300 mil pessoas atingidas. Segundo o relatório Avaliação de perdas e danos – Inundações e deslizamentos na Região Serrana do Rio de Janeiro, publicado em novembro de 2012 pelo Banco Mundial, ao menos 39 mil pessoas foram deslocadas involuntariamente, sendo que 16 mil precisaram de abrigo provido pelo Estado.

O relatório apontou que, como diferentes instituições do país participaram das atividades de assistência, a coleta e a compatibilização de informações foram dificultadas e serviram apenas para evidenciar o alcance do desastre. “Além das incomensuráveis perdas humanas e sociais, houve danos econômicos, com implicações relevantes sobre a qualidade de vida dos sobreviventes”. Um ano depois, a região serrana do Rio de Janeiro ainda estava longe de recuperar seu status pré-desastre, avalia o documento. As perdas foram estimadas em R$ 4,8 bilhões, mas esse valor “omite impactos relevantes em setores como o da educação e o da saúde, que não puderam ser considerados em função da indisponibilidade de informações detalhadas”.

Dada a dimensão, a tragédia foi considerada um dos oito maiores deslizamentos de terra do século em todo o mundo. Apesar de conviver recorrentemente com eventos dessa natureza, a região não havia, até então, vivido uma situação dessa gravidade, em que bairros inteiros foram cobertos de água em questão de segundos. “Decretada situação de emergência e de calamidade pública, formou-se uma grande rede de apoio, integrada por órgãos públicos locais, estaduais e federais, organizações privadas e voluntários”, descreveram as especialistas em políticas públicas Amarilis Busch e Sônia Amorim, no artigo A tragédia na região serrana do Rio de Janeiro em 2011: procurando respostas, publicado no repositório Casoteca de Gestão Pública, naquele ano.

O caso da região serrana do Rio de Janeiro acendeu um sinal de alerta ao Brasil. Em sua esteira, o governo federal criou, no ano seguinte, o Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres Naturais, que previa investimentos em mapeamento de áreas de risco, obras de prevenção – contenção de encostas, drenagem, adutoras –, estruturação da rede nacional de monitoramento e alerta e capacitação de profissionais para respostas de emergência.

Como minimizar efeitos negativos

Em todos os tipos de deslocamentos involuntários, há situações que podem ser temporárias ou definitivas. A situação provisória ocorre nos casos em que é necessário recuperar, o quanto antes, o lar ou a vizinhança, ou enquanto um novo lugar é preparado para receber os atingidos (leia aqui sobre o desafio de gerir uma moradia provisória).

Em situações provisórias ou definitivas, os protocolos que norteiam o tema são unânimes em sinalizar que os deslocamentos devem, sempre que possível, ser evitados. Mas, quando realmente necessários, devem ser ajustados para minimizar os efeitos negativos, considerando as demandas dos atingidos a partir de processos de escuta e diálogo.

Para reduzir o risco de deslocamentos forçados, a ONU recomenda no manual Como atuar em projetos de despejos e remoções? que os governos, permanentemente, desenvolvam uma política preventiva de monitoramento, com a participação dos atingidos; produzam informações sobre o número de famílias removidas e a situação de moradia em que se encontram; promovam avaliação periódica dos despejos e remoções; façam avaliação dos impactos em todos os casos; adotem legislação adequada; treinem pessoal especializado e, quando possível, criem um órgão específico para tratar do tema.

Cofundador do Instituto Igarapé e diretor do Observatório de Migrações Forçadas, o cientista político Robert Muggah defende que o Brasil tenha uma autoridade  capaz de centralizar as diferentes frentes de atuação em processos de apoio a atingidos e de reassentamento.

Um dos maiores desafios para os governos é desenvolver uma abordagem unificada, que aproxime especialistas na proteção dos direitos destas pessoas.

Robert Muggah, co-fundador do Instituto Igarapé

“Apesar de terem sido deslocadas por causas diferentes, como inundações, uma barragem ou a violência, a experiência do deslocamento é, com frequência, muito semelhante. Pode-se observar pessoas que precisam de abrigo, que não possuem acesso a alimentação e serviços, educação e saúde”, diz Muggah. “Então, um dos maiores desafios para os governos é desenvolver uma abordagem unificada, que aproxime especialistas na proteção dos direitos destas pessoas, fornecimento de serviços, restituição financeira, compensação e outras atividades necessárias.”

Como se caracteriza um desastre socioambiental

Segundo o guia Proteção aos direitos humanos das pessoas atingidas por desastres, publicado pela Universidade Federal de Santa Catarina em 2014, os desastres em geral são resultado da combinação de uma instabilidade com a ação humana desordenada de longo prazo.

Para o Observatório de Migrações Forçadas, os desastres caracterizam-se de duas formas: o grupo que reúne aspectos naturais, eventos adversos e degradação de longo prazo, como inundações, enxurradas, tempestades, alagamentos, erosão, estiagem, seca; e o daqueles provocados pelos seres humanos, associados a intervenções urbanas, a exemplo de incêndios, liberação de produtos químicos, rompimento de barragens e colapso de edificações.